Marcos Ulhoa Dani – Juiz do Trabalho da 3ª Região, Pós-graduado em Direito Material e Processual do Trabalho
A Lei 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé, até pela incidência de suas recentes modificações, ainda têm tido interpretações variadas na jurisprudência e da doutrina, especialmente quando se analisa a questão da autonomia do contrato de trabalho desportivo assinado pelo atleta profissional. A autonomia, ou não, do contrato de trabalho desportivo implicará na possibilidade, ou não, da modificação, para menor, dos vencimentos do atleta em um segundo contrato de trabalho desportivo com um mesmo empregador. A questão ora proposta gira em torno da hipótese da contratação de um atleta profissional, após findo um primeiro contrato de trabalho desportivo (que, por definição legal, é um contrato de prazo determinado), pela mesma entidade de prática desportiva, com vencimentos mais baixos. Chocam-se o princípio da irredutibilidade salarial (consubstanciado no artigo 468 da CLT e no próprio inciso VI do artigo 7º da CRFB-88) e a liberdade contratual das partes, em especial pela ocorrência de contratos autônomos e independentes (artigo 30 da Lei 9.615/98).
Pois bem. Inicialmente, é preciso pontuar que o parágrafo 4º do artigo 28 da Lei 9.615/98 é expresso ao estatuir que “aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais de legislação trabalhista e seguridade social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei (…)”. Ou seja, a Lei 9.615/98 é uma norma especial de aplicação preferencial frente às normas gerais do trabalho, que serão aplicadas de modo subsidiário, somente. Nos termos do inciso I, do parágrafo único do seu artigo 3º, o mencionado Diploma Legal esclarece que o desporto de rendimento é organizado de modo profissional quando pactuado em contrato formal de trabalho entre a entidade de prática desportiva e o atleta. Neste passo, observe-se o artigo 30 da Lei 9.615/98 que diz que o contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos. O parágrafo único do mesmo artigo estabelece que não se aplicam, a tais contratos, os arts. 445 e 451 da CLT, levando à interpretação da impossibilidade do contrato desportivo profissional transmudar-se para um contrato por prazo indeterminado. Da mesma forma, o inciso I, do §5º, do artigo 28 da Lei, estabelece que o vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato ou o seu distrato. Ou seja, a lei especial prevê o falecimento do contrato com a chegada de seu termo final. Como norma especial, a Lei Pelé derroga a norma geral naquilo que lhe for contrário ou colidente com o seu desiderato.
A situação descrita trata de uma clássica Antinomia de Normas, resolvida, a nosso sentir, pelo Princípio da Especialidade. Segundo o saudoso Mestre Norberto Bobbio, em seu Teoria do Ordenamento Jurídico, o Princípio da Especialidade, também denominado Lex specialis, em função da expressão latina lex specialis derogat legi generali, prevalece neste tipo de situação. Por esse critério, se as normas incompatíveis forem geral e especial, prevalece a segunda. O entendimento que norteia esse critério diz respeito à circunstância de a norma especial contemplar um processo natural de diferenciação das categorias, possibilitando, assim, a aplicação da lei especial àquele grupo que contempla as peculiaridades nela presentes, sem ferir a norma geral, ampla por demais. O contrato de trabalho desportivo tem natureza sui generis, decorrente da mencionada lei especial e das diferenciações das atividades desportivas (aonde não se busca propriamente o lucro, mas a performance em competições), tem características peculiares, o que justifica a aplicação mitigada das normas gerais trabalhistas, consideradas as especiais características do desporto. A própria Lei Pelé, em seguidas passagens, menciona a expressão “o contrato especial de trabalho desportivo”, mostrando, de plano, a diferenciação dos atletas profissionais, e de seus contratos, dos demais trabalhadores.
Como bem pontuado pelos eminentes doutrinadores Maurício Corrêa da Veiga e Fabrício Trindade de Souza, na obra Evolução do Futebol e das Normas que o Regulamentam: Aspectos Trabalhistas-Desportivos (LTr, 2013), o artigo 30 da Lei Pelé é expresso ao assegurar a autonomia de cada contrato de trabalho desportivo. Na mesma obra, os ilustres autores asseveram que em razão das especificidades que envolvem o atleta profissional de futebol, não há como se aplicar os princípios do direito do trabalho inerentes ao trabalhador comum (pg.64). Concluem, também, que só há possibilidade de mencionar tecnicamente o termo “renovação contratual”, quando da hipótese do clube formador e detentor do primeiro contrato esportivo for exercer a preferência contratual de extensão do vínculo com o jovem atleta. Neste caso, a própria lei fala em renovação e não em contrato autônomo, incidindo a impossibilidade de redução dos vencimentos no período de extensão do vínculo. Neste caso, por haver uma preferência do clube formador no contrato e uma conseqüente restrição na liberdade contratual do jovem atleta formado, justifica-se a irredutibilidade dos seus vencimentos na extensão do ajuste. Da mesma forma, entendemos pela impossibilidade de redução de vencimentos durante o interregno de um único contrato de trabalho, pois, aí sim, incidiria a hipótese do art. 468 da CLT, até pelo silêncio, ainda que teleológico e sistemático, da lei especial, incidindo a primeira parte do parágrafo 4º do artigo 28 da Lei 9.615/98.
De fato, nada impede que, findo o primeiro contrato de trabalho com determinada entidade de prática desportiva, o atleta entenda por bem firmar novo (e independente) contrato de trabalho com a mesma agremiação (Exemplo dos goleiros Rogério Ceni, Fábio Maciel e Marcos Reis que, durante anos, mantiveram, e, nos casos dos primeiros, ainda mantêm, contratos sucessivos de trabalho com os mesmos empregadores – São Paulo Futebol Clube, Cruzeiro Esporte Clube e Sociedade Esportiva Palmeiras, respectivamente). Na nossa visão, pela especificidade da Lei Pelé que regula a matéria e afasta a interpretação de que o atleta profissional possa ser tratado do mesmo modo que um trabalhador comum, entendemos que, na hipótese de assinatura de um contrato de trabalho desportivo sucessivo com o mesmo empregador, é possível a redução de vencimentos, considerado(s) o(s) contrato(s) anterior(es). O novo contrato firmado não se vincula com o(s) contrato(s) anterior(es). Um dos motivos que nos levam a tal conclusão é a perda de performance esportiva (uma das principais características peculiares do contrato de trabalho desportivo) em decorrência da idade. Salvo importantes e honorabilíssimas exceções, em que os atletas, com os anos de idade e prática, melhoram o seu rendimento competitivo, há uma degradação natural na rapidez das respostas musculares, articulares e cardio-respiratórias, essencialmente necessárias para a prática desportiva de alto nível. Pontue-se, de plano, que não se trata de conclusão discriminatória em relação à idade, mas simples conjunção jurídica da peculiaridade de um contrato de trabalho desportivo em que a alta performance é de fundamental importância e conclusões da medicina. Mesmo porque não se trata de uma condição observada em um mesmo contrato de trabalho (esta sim, discriminação vedada); trata-se, ao contrário, de uma livre negociação para formação de um novo vínculo com a mesma entidade esportiva, não havendo vinculação com o ajuste anterior.
As conclusões médicas citadas foram explicitadas em artigo publicado por pesquisadores do Centro de Pesquisas da Faculdade de Educação Física das FMU e do Departamento de Cardiologia Esportiva do Instituto Dante Pazzanese (http://luisaparente.com.br/material/aposentadoria esportiva.pdf – acesso em 17/01/14). No citado artigo, os pesquisadores concluíram que “O declínio na performance se deve como primeira causa ao avanço da idade. A influência da idade está em função de fatores fisiológicos, psicológicos e sociais e tem importância significativa para atletas jovens e adultos. No aspecto fisiológico o aumento da idade influencia nos esportes de alto nível de performance. No atleta adolescente, as mudanças da puberdade podem restringir mais do que contribuir para o desenvolvimento motor e performance tal como ocorre na ginástica olímpica. Em esportes como basquete, futebol e tênis nos quais o tamanho, a força e a precisão das habilidades motoras são fundamentais, as dificuldades são similares, mas com atletas a partir dos 30 anos. A idade também influencia a parte psicológica, como na falta de motivação para treinar e competir por ter alcançado seus objetivos competitivos. A idade possui também um elemento social, particularmente para os que se sentem desvalorizados pelos fãs, diretores, mídia e outros atletas.”. Além do desgaste natural dos anos de prática esportiva, seguidas lesões, comuns no decorrer de uma carreira desportiva, geralmente influenciam negativamente na técnica e na performance competitiva dos atletas. Isto tudo é, e pode ser, valorado, no momento de um novo contrato.
A conclusão da necessidade da alta performance desportiva para novos contratos mais vantajosos, apesar de parecer cruel, faz parte do que João Leal Amado qualificou como “Causa Mista” do contrato de trabalho desportivo, em artigo publicado na Obra Direito do Trabalho Desportivo – Os Aspectos Jurídicos da Lei Pelé frente às Alterações da Lei n. 12.395/2011, organizada e coordenada pelos Ministros do TST, Alexandre Agra Belmonte, Luiz Philippe Vieira de Mello e Guilherme Augusto Caputo Bastos (LTr, 2013). Segundo o articulista, “O regime jurídico do contrato de trabalho desportivo deverá, por conseguinte, adequar-se aos fins de ambos os ordenamentos, buscando a melhor combinação possível entre a tutela do trabalho e a tutela do jogo, entre a promoção dos interesses do trabalhador e a preservação do interesse da competição, entre a proteção da pessoa do fator produtivo/praticante desportivo e a salvaguarda da qualidade do produto/espetáculo desportivo.”. Na mesma obra, o eminente Desembargador do TRT da 4ª Região, Ricardo Tavares Gehling, lembra, em artigo próprio, que “No plano interno, o trabalho coletivo do atleta estabelece uma simbiose em que a sua valorização profissional depende do sucesso do clube que o emprega e vice-versa”. Percebe-se, pois, um fim social da norma, que deve ser privilegiado, nos termos, inclusive, do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Nesta seara, conclui-se que, em que pese entendermos pela impossibilidade de redução salarial durante o interregno de um único contrato de trabalho ou na renovação de contrato do jovem atleta após a sua formação com a entidade formadora, entendemos possível a diminuição de vencimentos no caso de assinatura de um novo contrato de trabalho desportivo, mesmo que sucessivo e com o mesmo empregador, em razão das suas peculiaridades legislativas, fisiológicas, desportivas e técnicas acima delimitadas.
Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2014/01/23/interna_brasil,409280/reducao-de-salario-em-contratos-esportivos.shtml
Tag: salário
Por Adriana Aguiar, do Valor Econômico.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) mudou seu posicionamento sobre greves de servidores públicos com longa duração. Antes, os ministros entendiam que metade dos dias parados deveria ser descontada. A outra deveria ser compensada. Agora, decidiram, ao analisar paralisação na Universidade de São Paulo (USP) que durou mais de 60 dias, em 2016, que todo período deve ser abatido dos vencimentos dos grevistas – no caso, servidores celetistas.
O julgamento ocorreu ontem na Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) – responsável por uniformizar o posicionamento do TST. Os ministros seguiram decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2016. Na ocasião, os ministros definiram que servidores estatutários devem ter dias de paralisação descontados (RE 693456), exceto se houver acordo de compensação. O entendimento, agora, foi estendido pelo TST aos servidores celetistas.
O impacto da decisão para os servidores é grande, uma vez que esse entendimento deve ser estendido para outros casos semelhantes, segundo o advogado do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp), Alceu Luiz Carreira, do Alceu Carreira Advogados Associados. “Esse entendimento vai na contramão de tudo que se construiu sobre o direito de greve nas últimas décadas”, diz. Segundo ele, o empregador não vai ter mais interesse em negociar para evitar uma paralisação. “Ele agora tem um trunfo nas mãos. Se houver greve, não haverá salário.”
A maioria dos ministros (seis a dois) seguiu o entendimento do relator, ministro Ives Gandra Martins Filho. Para ele, a greve no serviço público caracteriza-se como suspensão do contrato de trabalho, e, portanto, os dias parados devem ser descontados. Os ministros que divergiram, Maurício Godinho Delgado e Kátia Arruda Magalhães, entenderam que trataria-se de interrupção do contrato de trabalho e, por isso, os salários teriam que ser mantidos.
No caso concreto, a decisão deve prejudicar cerca de três mil funcionários da USP, do total de 12 mil. Em geral, os que recebem menores salários, como os que cuidam da limpeza, zeladoria e jardinagem da faculdade, segundo o advogado do Sintusp. “Esses funcionários em geral têm um controle de ponto mais rigoroso. Ao contrário de professores, médicos e odontólogos, que têm jornadas mais flexíveis”, afirma.
Carreira afirma que deve recorrer da decisão ao Pleno do TST e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para ele, existem diferenças entre servidores estatutários e celetistas. O estatutário, ao passar no concurso público, explica o advogado, assina uma espécie de contrato de adesão. Já o celetista teoricamente poderia negociar os termos do contrato de trabalho.
Antiga, a jurisprudência do TST era consolidada no sentido de descontar apenas metade dos dias parados em greves longas, para preservar o direito de greve, segundo o advogado Marcelo Faria, do escritório TozziniFreire. Para ele, no entanto, como o STF reconheceu que não se deveria pagar os dias não trabalhados, por uma questão de segurança jurídica e simetria, “é muito prudente que o TST tenha adotado esse mesmo critério”.
O novo posicionamento do TST, de acordo com o advogado trabalhista Maurício Corrêa da Veiga, sócio do Corrêa da Veiga Advogados, ressalta que a greve daqui para frente deve ser muito bem pensada porque, se for considerada abusiva, o empregado poderá sofrer consequências. “Antes, por força jurisprudencial, definiam que os funcionários poderiam compensar parte dos dias parados, em casos de greves consideradas legais, uma vez que poderia-se prejudicar o sustento do empregado e sua família. Agora não tem mais isso”, diz. Segundo ele, a decisão serve como caráter pedagógico para não haver banalização da greve.
Procurados pelo Valor, os advogados que atuam na Procuradoria-Geral da USP não deram retorno até o fechamento da edição.