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A polêmica em torno do artigo 13 da diretiva europeia sobre direito autoral

Conjur
Por Luciano Andrade Pinheiro e Lucas Barbosa de Araújo

Recentemente, o Conselho da União Europeia aprovou a Proposta de Diretiva sobre Direito Autoral 2016/0280 (COD), que inaugurou grande polêmica por receber acusações desenfreadas de que causaria o fim da internet. A proposta, que ainda precisa de aprovação do Parlamento Europeu, foi criada com o objetivo de combater a pirataria e a distribuição de conteúdo on-line que implique em violação aos direitos de autor. No entanto, a medida foi amplamente criticada por estipular a necessidade de adoção de mecanismos de filtragem denominados “tecnologias de reconhecimento de conteúdos” e por prever a cobrança de uma taxa de licenciamento para sites que reproduzam conteúdos de veículos jornalísticos.
As empresas afetadas pela proposta de diretiva salientam que, da forma como previstas, as normas que exigem a implementação de tecnologias preventivas podem se desdobrar no fim da internet, como a conhecemos. A presidente executiva do YouTube, Susan Wojcicki, chegou a afirmar que se adequar à regulação seria totalmente impossível, porque a implementação dos denominados “filtros de upload” demandaria custos financeiros exorbitantes e, além disso, ensejaria graves riscos à liberdade de expressão, uma vez que os sistemas informatizados não fariam distinção entre utilizações permitidas, como paródias e memes, e as violações de direito autoral que se pretende coibir.
Esses argumentos foram replicados por dezenas de youtubers e influenciadores digitais ao afirmarem reiteradamente que a proposta de diretiva serviria somente aos interesses de grandes empresas que administram a exploração econômica de direitos autorais, em nítido prejuízo dos usuários da internet e dos próprios autores ou criadores de conteúdo. O que passou despercebido em meio a todas essas críticas, no entanto, é que o próprio YouTube, empresa subsidiária do Google, é também representante de um segmento industrial milionário.
Para compreender a controvérsia em sua profundidade, traremos rápida explicação acerca do real conteúdo da proposta de diretiva e vislumbraremos as eventuais consequências que a aprovação desse instrumento normativo pode ocasionar no Brasil.
As disposições mais relevantes repousam no polêmico artigo 13 e afetam plataformas que veiculam conteúdo gerado por terceiros, como YouTube, GitHub, Instagram e eBay. Nos termos da própria diretiva, operadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e disponibilizam acesso a grandes quantidades de obras ou materiais, desde que fornecidos pelos próprios usuários, deverão prevenir a disponibilização, em suas plataformas, de conteúdo protegido pelo direito autoral, conforme haja notificação por titulares de direito, ou por meio da implementação e utilização de tecnologias de filtragem de dados, conhecidas como “filtros de upload“.
Esse dispositivo também prevê que os Estados signatários estabeleçam, em seus ordenamentos internos, regras que obriguem os provedores de serviço a fornecer informações atualizadas aos titulares de direito acerca da implementação de tecnologias preventivas e da frequência de utilização de suas obras intelectuais. Além disso, o artigo 11 estipula que Estados-membros devam conferir a editores de publicações de imprensa direitos de proteção relativos à utilização e veiculação digital das suas publicações. Ou seja, plataformas de busca que agregam e direcionam informação concebida por terceiros, como o Google, podem sujeitar-se ao pagamento de royalties para serem capazes de endereçar legalmente aos seus usuários qualquer conteúdo protegido pelo direito autoral.
Em poucas palavras, a diretiva importará na possibilidade de que as plataformas de conteúdo gerado por terceiro sejam responsabilizadas por infrações de direito autoral acaso não estipulem mecanismos considerados satisfatórios para inibir a utilização indevida de obras intelectuais. Apesar de essa iniciativa fazer parte de uma agenda política que pretende uniformizar comércio eletrônico na Europa, as consequências não serão imediatas. Afinal, mesmo após aprovação pelo Parlamento europeu, caberá a cada Estado-membro da União Europeia recepcionar as normas previstas pela diretiva e compatibilizá-las aos seus ordenamentos internos.
A eficácia e o impacto das medidas previstas pela proposta de diretiva, portanto, são necessariamente condicionados à forma como as normas serão recepcionadas internamente pelos Estados-membros da União Europeia, o que por si só já afasta os temores infundados de que a internet, como a conhecemos, brevemente conhecerá seu fim.
O que merece atenção é que, no regime anterior, ainda vigente e sensivelmente distinto, as plataformas de conteúdo gerado por terceiro encontravam-se totalmente desobrigadas da necessidade de adquirir licenças para reproduzir conteúdo e não se sujeitavam à responsabilização civil acaso seus usuários cometessem infrações de direito autoral. As prerrogativas que blindam essas plataformas de qualquer responsabilização patrimonial são conhecidas como “portos seguros” (safe harbors) e foram inauguradas pelo artigo 14, da Diretiva 2000/31/EC, do Parlamento Europeu.
Esse sistema foi duramente criticado por titulares de direito por implicar em grave desbalanceamento à receita do setor. No YouTube, por exemplo, a única modalidade de remuneração ofertada aos autores é unilateralmente definida pela própria plataforma e está embasada em critérios de monetização de vídeos a partir de publicidade veiculada, que variam conforme o tipo de conteúdo do vídeo disponibilizado, o engajamento dos usuários, havendo, ainda, requerimentos de número mínimo de assinantes e de horas de vídeo acessadas a que um canal possa gerar rendimentos. Excepcionalmente, acaso outro usuário poste conteúdo que contenha obra intelectual de terceiros, o YouTube promove um rateio das verbas de publicidade monetizadas entre o usuário provedor de conteúdo e o titular dos direitos correspondentes.
A distribuição de rendimentos de direito autoral nesses termos se evidenciou extremamente insatisfatória ao longo dos anos. A indústria fonográfica reportou exaustivamente um dramático descompasso entre o grande volume de música consumido a partir de plataformas de conteúdo gerado por terceiro e a percepção decorrente de baixa remuneração por detentores de direitos autorais, fenômeno que recebeu a alcunha de “value gap”. A título de ilustração, a Federação Internacional de Indústria Fonográfica (IFPI) denunciou em 2018 que serviços de streaming reúnem em média 272 milhões de usuários e geram receita de US$ 5,569 bilhões, enquanto plataformas de streaming de vídeo, como o YouTube, possuem 1,3 bilhão de usuários e apresentam retorno desproporcional de apenas US$ 856 milhões.
Ainda que as consequências da implementação da proposta de diretiva sejam incertas no contexto europeu, a tendência é que as suas previsões influenciem debates legislativos no Brasil, especificamente direcionados à utilização de obras intelectuais no ambiente digital. Na prática, ainda que formalmente desobrigadas, ante à inexistência de regime legal específico, as plataformas de conteúdo gerado por terceiros já devem aplicar, também no Brasil, as novas tecnologias preventivas a fim de rechaçar prospectivamente chances de responsabilização civil por infrações de direitos autorais cometidas por seus usuários.
No Brasil, a Lei de Direito Autoral (Lei 9.610/98), apesar de promulgada em plena virada de século, é considerada defasada por não endereçar diretamente o fenômeno da internet. As controvérsias jurídicas que envolvem utilização digital de obras intelectuais no Brasil são normalmente resolvidas com amparo em expressões abertas, que fornecem ao intérprete diretrizes básicas e conceitos fundamentais que regram as modalidades de utilização aplicáveis no ambiente virtual, como, por exemplo, a disposição do artigo 7º, que define obras intelectuais como aquelas “expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”.
Mais recente, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) estabeleceu regras antipáticas àquelas debatidas na proposta de diretiva do Parlamento Europeu, mas não tratou especificamente de direito autoral. O artigo 19, com efeito, estabelece que o provedor de aplicações de internet somente será responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Trata-se de norma usualmente invocada para remediar, por exemplo, a divulgação ilícita de imagens e vídeos relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade de usuários.
Portanto, eventual adequação sem ressalvas do quadro normativo brasileiro ao cenário europeu demandaria drástica mudança da postura legislativa recentemente adotada pelo Brasil, o que seria indesejável por comprometer a segurança jurídica que ampara todo setor. A título de ilustração e nos termos do Marco Civil da Internet, acaso haja notificação de usuários denunciando violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização, de imagens contendo nudez, a obrigação de o provedor de aplicações tornar indisponível o conteúdo fica condicionada à observância dos “limites técnicos do seu serviço”.
A proposta de diretiva europeia, por outro lado, prioriza a garantia de proteção aos titulares de direito sobre obras intelectuais e não demonstra preocupação acentuada com limitações técnicas dos serviços regulados ou com os impactos tecnológicos e econômicos decorrentes da necessidade de implementação das tecnologias de filtragem pelas plataformas de conteúdo gerado por terceiros, sendo esta uma das principais críticas atualmente difundidas.
Vê-se que o problema é complexo e promete discussões acaloradas nos âmbitos do Estado, da sociedade civil e do setor privado. Nada obstante, faz-se plenamente pertinente que o sistema normativo de direito autoral brasileiro seja modernizado, a fim de que restem específica e normativamente endereçadas as novas dinâmicas do mundo digitalizado. Até porque, atualmente, são interpretações tecidas pelo Judiciário que vêm acomodando a legislação autoral à internet, de que resulta a pronúncia de julgamentos tecnicamente controversos, como no caso do Recurso Especial 1.559.264/RJ, em que o Superior Tribunal de Justiça definiu a natureza jurídica das transmissões de dados realizadas por meio da tecnologia do streaming, estendendo, também para essa modalidade de utilização, o monopólio de arrecadação e distribuição de rendimentos detido pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).
A controvérsia merece ser endereçada de forma compatível com a sua complexidade, sob pena de que lutemos, irrefletidamente, as batalhas econômicas travadas por indústrias de intermediários de grandes proporções, que enxergam autores e criadores como apenas longínquo ponto às extremidades de complexas cadeias de arrecadação e distribuição de rendimentos de direito autoral.
Como visto, a controvérsia em torno da proposta de diretiva europeia compreende verdadeira guerra entre segmentos industriais que, em última instância, preocupam-se sobretudo com a rentabilidade de seus modelos de negócios. Na batalha, situa-se, de um lado, a indústria fonográfica, encabeçada por gigantescas associações de gravadoras que até os dias atuais dominam um mercado multimilionário que, aos poucos, vem se adaptado à internet graças à tecnologia do streaming. De outro, têm-se plataformas de atuação imperialista no contexto da internet que comprovadamente têm lucrado quantias impensáveis a partir da veiculação e disponibilização de obras intelectuais concebidas e produzidas por terceiros, sem repassar aos autores compensação justa pela exploração econômica de suas criações.
O aspecto mais relevante no contexto dessa discussão é que o destinatário real das normas protetivas concebidas pela proposta de diretiva europeia são artistas, autores, letristas, produtores e músicos, ou seja, indivíduos cuja vida profissional é inteiramente dedicada à criação e à disseminação de obras culturais. Apesar de essas pessoas participarem de uma indústria global e multimilionária, pouco ou nada recebem em contrapartida ao seu esforço criativo, o que compromete definitivamente sua subsistência e, consequentemente, desincentiva e inviabiliza a criação. A mudança legislativa é, portanto, necessária, e os temores relacionados ao suposto “fim da internet”, popularmente difundidos pelos últimos meses, não podem obscurecer a profundidade do problema, sob pena de consubstanciarem alarmismo injustificado, a ser propagandeado e fomentado por empresas atuantes no mercado digital tão somente para resguardar e preservar seus modelos de negócios lucrativos.