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Danilo e a liberdade de expressão. Nossa distância em relação aos americanos

Estadão
Blog do Fausto Macedo
Por Luciano Andrade Pinheiro*
12/04/2019

Na data de ontem foi divulgada na internet a sentença que condenou Danilo Gentili a 6 meses e 28 dias de detenção pelo crime de injúria cometido contra a deputada Maria do Rosário. A conduta entendida como típica foram postagens com este teor: “qdo alguém cuspir em você devolva com um soco que @_mariadorosario aprova”. “Cuspir nela qdo ela o chamar de estuprador tb”; “Aí ela chama o cara de estuprador toma empurrão e dá chilique. Falsa e cínica para caraleo”. “Já já @_mariadorosario aparece no rádio falando que cuspir na cara de uma mulher no nordeste é sinal de respeito. Nojenta para caraleo”.

Documento

Após essas mensagens no Twitter, a deputada Maria do Rosário enviou, por intermédio da Procuradoria da Câmara dos Deputados, uma notificação a Danilo Gentili com o pedido de que as postagens fossem apagadas. Sucedeu ao recebimento desta correspondência um vídeo no qual Danilo Gentili rasga a notificação, coloca os pedaços dentro da cueca e em seguida os põe em um envelope para ser enviado de volta à emissora. Esta conduta foi qualificada pela Juíza como “concretamente grave e altamente reprovável”. Continua, “o seu gesto ignominioso transcendeu a linha ética pelo abuso do direito que lhe foi conferido constitucionalmente, maculando, como consectário, a honra subjetiva da deputada
Ao tomar conhecimento desta sentença, imediatamente lembrei-me do filme O Povo contra Larry Flynt de 1996, do aclamado diretor de cinema Milos Forman, que conta a história do produtor-editor de uma famosa revista pornográfica estadunidense e sua epopeia judicial em nome da defesa do direito constitucional à livre expressão do pensamento. O que chama mais atenção é que, apesar de se tratar de obra de ficção, o filme se baseia na realidade e seu ápice – o julgamento na Suprema Corte Americana – de fato ocorreu.
A briga que ensejou a judicialização foi travada com um pastor evangélico chamado Jerry Falwell, que utilizava suas pregações televisionadas para destratar Larry Flynt e sua revista. Como reação, a revista de Larry Flynt, denominada Hustler, publicou uma entrevista fictícia com o pastor. O título já chama atenção: “Jerry Falwell talks about his first time” ou, em tradução livre “Jerry Falwell fala sobre sua primeira vez”. Tratava-se de uma peça ofensiva no entender de uns, engraçada no entender de outros. Para que o leitor possa fazer seu próprio juízo, a seguir traduzo livremente perguntas e respostas retiradas diretamente da página da revista reproduzida na internet.
Eis a entrevista:
“Falwell: minha primeira vez foi em um banheiro externo de uma casa em Lynchburg, Virginia.
Entrevistador: Não era muito apertado?
Falwell: Não depois que eu chutei a cabra para fora.
Entrevistador: Você tem que me contar tudo sobre isso.
Falwell: Eu nunca pensei em fazer com minha mãe, mas depois que os caras da cidade tiveram uma ótima experiência com ela eu pensei, que se dane!
Entrevistador: Mas sua mãe? Isso não é constrangedor?
Falwell: Acho que não. A aparência não me importa muito em uma pessoa.
Entrevistador: Continue.
Falwell: Bem, nós estávamos completamente bêbados de uma mistura de Campari, Ginger Ale e soda chamada Fogo e Enxofre. E mamãe parecia mais bonita que uma prostituta batista com uma nota de 100 dólares.
Entrevistador: Campari e sua mãe? Dentro de um banheiro? Interessante!
Falwell: O Campari estava ótimo, mas mamãe desmaiou antes de eu gozar.
Entrevistador: Você experimentou de novo?
Falwell: Claro, muitas vezes. Mas não no banheiro. Além de mamãe e das fezes, as moscas eram difícil de aturar.
Entrevistador: Estava me referindo ao Campari.
Falwell: Ah, sim. Eu sempre tomo uns tragos antes de subir no púlpito. Eu não poderia falar aquele tanto de besteira sóbrio, você poderia?”
Por considerar sensivelmente degradante o teor da publicação, o pastor Falwell pediu que a justiça americana lhe reconhecesse o direito a uma indenização pelo sofrimento emocional ocasionado pela entrevista acima transcrita. Larry Flynt se defendeu no processo afirmando que se tratava de uma paródia, que o pastor era uma pessoa pública, sujeita a esse tipo de sátira, e que a primeira emenda da Constituição Americana lhe assegurava ampla liberdade de expressão. As primeiras instâncias julgaram a favor do pastor e condenaram Larry Flynt ao pagamento de vultosa indenização. Contudo, a Suprema Corte, que julgou o caso em definitivo, considerou não ser passível de reconhecimento judicial o sofrimento meramente decorrente de uma paródia.
A posição da justiça americana é no sentido de que especialmente pessoas públicas não têm o direito de receber indenização de qualquer natureza em face da divulgação de uma crítica pública, ainda que esta crítica seja de gosto duvidoso. Em outras palavras, um discurso público e satírico não poderia ser considerado ofensivo a ponto de ensejar o pagamento de uma indenização, por força do direito à liberdade de expressão, garantido pela primeira emenda da constituição estadunidense.
Para os americanos, no final das contas, a pessoa não sofre dano de natureza extrapatrimonial quando é caricaturada, mesmo que a peça de ficção seja ofensiva ao nível daquela transcrita acima.
Importante ressaltar que, no sistema norte americano de direito, o precedente da Suprema Corte tem efeitos erga omnes, ou seja, deve ser obrigatoriamente observado por todo sistema judiciário, o que ressalta sobremaneira a importância da decisão e, porque não dizer, da batalha épica de Larry Flynt.
Para o judiciário brasileiro, ao contrário, o humor tem limites bem estabelecidos. Quando confrontados os direitos da livre expressão e da imagem de pessoas, mesmo públicas, é possível avaliar a preponderância de um sobre o outro. Em outras palavras, a justiça brasileira pode atuar como um aferidor do que é simplesmente engraçado e do que é ofensivo. E, por aqui, o caso do humorista Danilo Gentili mostra que as pessoas podem ser presas por suas palavras, consequência muito mais gravosa do que a mera condenação ao pagamento de indenização.
Não poderia finalizar esse texto sem dizer que me agrada a posição norte-americana em comparação com a brasileira. Entendo que o judiciário não pode nem deve avaliar o humor, que pode ser de muito mau gosto, mas continua sendo humor. Me apetece o seguinte pensamento: “A fala é poderosa. Pode agitar as pessoas para a ação, mover as lágrimas de alegria e tristeza, e (…) infligir grande dor. Sobre os fatos diante de nós, não podemos reagir a essa dor, punindo o orador. Como nação nós escolhemos um caminho diferente – proteger até mesmo discurso dolorosos sobre questões públicas para garantir que nós não sufoquemos o debate público”. (Snyder v. Phelps).
*Luciano Andrade Pinheiro é sócio do Corrêa da Veiga Advogados