*Filipe Oliveira e Arthur Cagliari
A proteção que a MP (medida provisória) da Liberdade Econômica quer garantir ao patrimônio de sócios e investidores de empresas em casos de quebra tem alcance incerto, segundo advogados ouvidos pela Folha.
Entre as dificuldades apontadas por advogados para que a mudança tenha o efeito pretendido estão a existência de diferentes leis tratando do mesmo tema e entendimentos do judiciário que buscam proteger trabalhadores e a União que possuem créditos a receber de companhias sem recursos para pagá-los.
A MP altera o artigo 50 do código civil, que trata das possibilidades da dívida da empresa ser cobrada de seus sócios em processos de execução.
Com a mudança, o texto passa a ser mais restritivo, exigindo mais critérios para que a chamada despersonalização da pessoa jurídica aconteça e a dívida vá para o sócio. O texto passa a indicar, por exemplo, que deve haver o uso da companhia para lesar credores ou a utilização de seu dinheiro para pagamento de contas pessoais.
A medida, que foi aprovada na Câmara dos Deputados na terça-feira (13) e agora segue para o Senado, é uma iniciativa do governo Bolsonaro com objetivo de reduzir burocracias e estimular negócios no Brasil.
No caso específico de proteção aos bens dos donos das empresas, a proposta quer estimular o empreendedorismo, diminuindo os riscos de quem faz negócios. Isso aconteceria pois, com a mudança, sócios só correriam o risco de perder aquilo que investiram na empresa, sem colocar em cheque outros bens em caso de fracasso do negócio.
Parte dos especialistas, no entanto, diz acreditar que o objetivo pretendido pode não ser atingido por conta de práticas já estabelecidas pelo judiciário e pela existência de diferentes leis sobre o tema.
André Santos, sócio do setor trabalhista do escritório Siqueira Castro, diz que ainda não é possível saber qual entendimento será adotado pela Justiça do Trabalho, levando em conta que ela tende a proteger trabalhadores e vê os pagamentos que eles têm para receber como essenciais.
“O que vem pela frente é um cenário de insegurança jurídica”, afirma.
Essa incerteza decorre do fato de a despersonalização da pessoa jurídica, além de estar prevista no Código Civil (onde há a alteração da MP), também aparecer em outros termos no Código de Defesa do Consumidor, no Código de Processo Civil e no Código Tributário Nacional (para dívidas fiscais). É incerto qual será a aplicação mais usual após uma eventual sanção da MP, diz Santos.
O professor de direito do trabalho da FMU Ricardo Calcini, por exemplo, é um dos que defende o uso do Código de Defesa do Consumidor para embasar a execução do patrimônio pessoal dos sócios.
Isso porque, de forma análoga à relação entre consumidor e empresa, há uma diferença de poder entre o empregador e o funcionário que justificaria a prática.
“Como o trabalhador é hipossuficiente [mais frágil] em relação a empresa, eu não poderia me socorrer pelas regras do Código Civil, que são aplicáveis entre empresas ou relações civis.”
Ricardo Quass Duarte, sócio do Souto Correa advogados, também vê pouca probabilidade de mudança em relação a processos trabalhistas.
“Na Justiça do Trabalho, há uma presunção de que, se a empresa não paga o débito trabalhista, ela já estaria cometendo um ato ilícito e isso seria suficiente para atingir sócios e talvez até administradores.”
Em casos de endividamento tributário, a medida é mais um sinalizador para tentar mudar a cultura da Fazenda na cobrança automática do que uma grande alteração jurídica, avalia Rafael Vega, sócio do Cascione.
“Eu tenho a prática e o jurídico. Qual é a prática? A Fazenda vai lá, atira para todo lado e vai em cima [cobrar] de todo mundo. Na lei, porém, está escrito que só quem fez a fraude que pode responder por isso”, disse.
“O que esse texto novo faz é dar mais segurança e reafirmar a interpretação. Porque isso é uma coisa de cultura jurídica, então essa norma talvez ajude a mudar.”
Gabriela Jajah, sócia do setor tributário do Siqueira Castro, diz acreditar que a nova redação do Código Civil, se aprovada, servirá de argumento para tentar evitar a transferência da dívida da empresa para o sócio, mas pondera que o pedido da defesa pode não ser acolhido com frequência, levando em conta que o Código Tributário e a prática corrente adotam critérios mais abrangentes.
“Achamos difícil o judiciário aplicar a mudança. Ele entende que, ao fazer a cobrança ao sócio, está preservando o interesse da sociedade.”
Mesmo com limitações, o advogado Ricardo Duarte diz acreditar que a mudança na lei é positiva por proteger empresários de dívidas com bancos e fornecedores.
Nesses casos, ela também diminui o risco de que investidores que não participam da administração da empresa venham a ser responsabilizados, já que seu texto define que só quem cometeu irregularidades deve ser cobrado.
Na mesma linha, o advogado André Fittipaldi, do escritório TozziniFreire, vê a mudança como uma maneira de deixar de responsabilizar sócios que são meros investidores.
“Há quem participe da empresa com uma cota, como os investidores anjos. Eles só põem o dinheiro, não sabem como o empregado está sendo pago, não ganham pró-labore. Então está claro que eles não estão no dia a dia da empresa, mas acabam sendo responsabilizados.”
Em oposição aos que veem pouca chance de a MP atingir o efeito pretendido, Luciano Pinheiro, advogado do escritório Corrêa da Veiga, diz acreditar que o texto da MP é eficaz, levando em conta que ela também traz dispositivos que explicitam a função da criação de empresas de responsabilidade limitada como meio lícito de proteção do dinheiro dos sócios.
Em sua avaliação, com a mudança na lei, trabalhadores passam a estar expostos a mais risco e terão de estar mais atentos à saúde financeira das empresas nas quais trabalham para buscar ressarcimento de eventuais dívidas em tempo hábil, antes que o patrimônio da companhia se torne insuficiente.
“A MP está dizendo que, se a empresa quebrar, o prejuízo é de todo mundo, da empresa, do sócio e do empregado também”, afirma.
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