Depois da aguardada decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a terceirização de qualquer atividade empresarial, a comunidade jurídica agora discute como será a aplicação do entendimento.
O professor Ricardo Calcini, por exemplo, entendeu que só será preservada a coisa julgada chamada de soberana, ou seja, quando houve o prazo de dois anos do trânsito em julgado. “Essa permaneceria intacta. O que dá a entender e com base nas discussões do Código de Processo Civil que foram colocadas permitirá agora então que as partes interessadas, no caso empresários que perderam ações, reavivassem a discussão por via da ação rescisória”, apontou.
Ele afirma ainda que ficou nebulosa a questão da subordinação. “Há uma certa cisão sobre esse entendimento. Muitos entenderam que a terceirização nunca seria ilícita e jamais se poderia admitir vínculo de emprego com a empresa contratante. A outra linha, a qual eu ainda permaneço, é que foi afetada apenas a estrutural, e não aquela em que o subsidiário acaba tratando o subsidiário como seu empregado”, explicou. Calcini ressaltou ainda o fato de os ministros não terem enfrentado uma modulação, valendo a decisão desta quinta para todos os julgamentos.
“Esse julgamento impacta milhares de ações coletivas e individuais, acabando com a insegurança jurídica que há décadas persiste no Brasil, já que a atual Súmula 331 do TST, que restringe a terceirização de atividade-fim, representa violação aos preceitos constitucionais fundamentais da legalidade, da livre-iniciativa e da valorização do trabalho”, disse Luiz Antonio dos Santos Junior, sócio da área trabalhista do Veirano Advogados.
Na mesma linha de entendimento, para o advogado trabalhista Luciano Andrade Pinheiro, do escritório Corrêa da Veiga Advogados, o STF deixou clara a constitucionalidade do modelo. “A terceirização de serviços não infringe a legislação trabalhista. O julgamento confirma que a posição da Justiça do Trabalho tinha uma carga muito mais ideológica do que propriamente constitucional”, disse. De acordo com ele, a reforma trabalhista, no que trata da terceirização, é mais um sinal de que “esse é um caminho sem volta.”
Da mesma forma entende o advogado Ronaldo Tolentino, do Ferraz dos Passos. Trata-se, para ele, de fenômeno irreversível. Tolentino ainda destaca que o critério adotado pelo TST na Súmula 331 não se mostrava o melhor para dirimir as controvérsias relativas à terceirização.
“Me parece que o critério das novas regras trabalhistas de atividade específica e especializada seja mais efetivo para a solução, de modo a permitir a efetiva terceirização de parte da produção, protegendo ao mesmo tempo o trabalhador da mera locação de mão de obra.”
Especialista em Direito do trabalho e professora do CEU Law School, Karen Penido avalia que a posição dos ministros era esperada, bem como foi acertada. “Não pode uma súmula criar direitos e obrigações ou proibir uma contratação se a própria lei não tinha essa restrição”, apontou. A advogada acredita que a decisão tem o potencial de incrementar a participação de empresas de menor porte e prestadoras de serviços no mercado.
Na prática, ela afirma que o receio de algumas posições contrárias de que a decisão criasse uma onda de demissões não deve se concretizar. “Terceirizar também é caro. Você pode ter eventualmente uma redução de custos, mas pode ter um aumento também, a depender se você busca um serviço mais especializado”, disse. Karen também cita a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços e a quarentena estabelecida para impedir dispensa e recontratação na sequência.
Clarice Fernandes Lemos Wanderley, do Dannemann Siemsen, diz que a decisão do Supremo é um marco. “Abre-se uma oportunidade para que todas as decisões contrárias à licitude da terceirização e que ainda sejam passíveis de recurso possam ser revistas e julgadas de acordo com a tese vitoriosa no STF”, disse.
Para André Ribeiro, sócio do Dias Carneiro Advogados, a terceirização fraudulenta ou com objetivo de não pagar salários ou de utilizar uma empresa o interposta exclusivamente para cessão de mão-de-obra permanece ilegal, pois não foram alterados os requisitos para reconhecimento do vínculo de emprego, dentre os quais a pessoalidade e a subordinação jurídica.
“Por outro lado, a decisão da Suprema Corte traz elementos significativos para empresas com ações ainda em trâmite nas quais se discute o reconhecimento do vínculo de emprego ou a responsabilidade solidária da tomadora de serviços com base exclusivamente na natureza da atividade contratada”, afirmou.
Tendência global
Fábio Rapp, advogado e professor universitário, ao contrário, frisa que a licitude da terceirização coloca o Brasil em sentido oposto ao movimento global na área trabalhista porque não segue o padrão que está sendo usado no mundo, como argumentou o ministro Gilmar Mendes.
No voto, Gilmar afirmou que “a terceirização é decorrente da própria especialização do trabalho, tendência que permitiu nos últimos séculos que as sociedades se desenvolvessem e melhorasse a vida das pessoas”.
Para o ministro, a proibição amarrava o país a um modelo verticalizado na contramão de um movimento global de descentralização. “Seria isolar o Brasil desse contexto, o que seria condená-lo à segregação econômica. A flexibilização passa necessariamente por ajustes econômicos, políticos e jurídicos, que resultarão no aumento dos níveis de ocupação e do trabalho formal, que por conseguinte trarão desejáveis ganhos sociais.”
Rapp defende, no entanto, que o que se prega no mundo da economia e do mercado globalizados no que tange à terceirização não é precarizar a mão de obra. “Em países como Portugal, França, Alemanha, o terceirizado talvez ganhe mais ou ao menos o mesmo que o funcionário da tomadora de serviços. No Brasil, não é esta a realidade. Ele ganha menos, tem problema de representação sindical e de coalizão coletiva”, disse.
Por esse motivo, impedir esse modelo seria estar na direção do que pensa o Direito do Trabalho do mundo, protegendo o trabalhador terceirizado. “Aqui, ele está em condição de trabalhador segregado, em condição pior do que o funcionário da tomadora”, concluiu.
Ele comentou ainda o voto do ministro Marco Aurélio, que considerou a terceirização fere o princípio da isonomia remuneratória. “Para a nossa surpresa e de forma histórica, Marco Aurélio acompanhou a divergência pela ilicitude da terceirização”, disse. Marco Aurélio afirmou que o TST “nada mais fez do que cristalizar a longa construção jurídica gestada tanto em sede legal quanto no âmbito da Justiça do Trabalho”.
“Protetivo não é o julgador, o TST, mas a própria legislação trabalhista. E ela não pode ser fulminada pelo Supremo, que tem o dever de preservar a Constituição”, disse Marco Aurélio. Essas posições podem, no entendimento de Fábio Raupp, ser um indicativo de como a corte vai tratar as ações que questionam a reforma trabalhista.
A ADPF foi proposta pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e questionava a Súmula 331 do TST que regia o tema. A ADPF argumentava que a súmula violava alguns preceitos fundamentais, como a legalidade, a livre-iniciativa e a valorização do trabalho.
Já o recurso extraordinário questionava uma decisão do TST que manteve a ilicitude da terceirização de serviços, declarada numa ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, sob argumento de que proibiria que empresas idôneas fizessem a prestação de serviço, a intermediação da mão de obra, sem fundamento legal à época.
Indústria comemora
Após decisão do Supremo para declarar a constitucionalidade da terceirização, a Confederação Nacional da Indústria afirmou que a decisão foi acertada, uma vez que a distinção entre atividade-meio e atividade-fim, como colocada na Súmula 331, se mostrava incompatível com as regras praticadas no mundo na contratação de serviços ou no fornecimento de bens especializados e prejudicava o crescimento econômico e o desenvolvimento social.
Para o presidente da confederação, Robson Braga de Andrade, a terceirização consiste de contratos de natureza civil entre duas empresas, que não alteram as obrigações trabalhistas e previdenciárias de cada uma delas com seus respectivos funcionários.
“A terceirização tem papel estratégico nos processos produtivos e deve ser utilizada para aumento da produtividade e competitividade por meio de processos que amplificam especializações e geram oportunidade de empreendedorismo, intercâmbio tecnológico e inovação”, frisa.
Segundo Braga, antes do posicionamento da suprema corte, a definição do que é atividade-fim estava sujeita a critérios subjetivos, dando margem para que uma empresa que contratasse determinado serviço fosse alvo de ação judicial por terceirização ilícita, enquanto sua concorrente, com contrato semelhante.
“A decisão de hoje confirmou que, mesmo antes da aprovação da lei da terceirização, as empresas já podiam escolher quais atividades terceirizar. É um marco importante, que estabelece diretriz clara e obrigatória a ser seguida pela Justiça do Trabalho em julgamentos futuros que abordem a terceirização”, disse.
ADPF 324
RE 958.252
Revista Consultor Jurídico, 31 de agosto de 2018.