Esta obra é destinada a advogados, juízes, membros do Ministério Público, membros da Justiça Desportiva, estudantes e todos àqueles que pretendem aprofundar o conhecimento na legislação desportiva. Também é direcionada aos dirigentes das entidades de prática desportiva, na medida em que responsáveis diretos pela gestão dos contratos de trabalho dos atletas profissionais, com reflexos não apenas materiais e/ou financeiros, mas, principalmente, perante os sócios e os torcedores, que passam horas e horas especulando acerca de contratações, dispensas, renovações de contrato, manutenção de talentos das categorias de base e outros assuntos inerentes ao futebol, todos tutelados pelo direito do trabalho aplicado ao atleta profissional.
“O respeito à vida é uma decorrência
ética do respeito pelo seu semelhante. O ser
humano sabe que o animal pode sofrer, sabe
fazê-lo sofrer e pode evitar o sofrimento.
A sabedoria dá-lhe responsabilidade.”
O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos (6 x 5), ser inconstitucional a Lei 15.299/2013 do estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado.
De acordo com o voto do ministro Marco Aurélio Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade, os laudos técnicos apresentados no processo demonstraram consequências nocivas à saúde dos animais. A saber: fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, fratura e eventual arrancamento do rabo e comprometimento da medula óssea. Além dos bovinos, restaram evidenciadas lesões nos cavalos.
Dessa forma, restou decidido que o dever de proteção ao meio ambiente, previsto no artigo 225 da Constituição Federal se sobrepõe aos valores culturais da atividade desportiva. Com efeito, o artigo 225 estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Outrossim, incumbe ao poder público proteger a fauna e a flora, sendo vedada a adoção de práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade[1].
A Constituição pode ser considerada avançada nesse aspecto, na medida em que, além de determinar a proteção da fauna e da flora, veda a adoção de práticas que impliquem na extinção das espécies ou que submetam os animais à crueldade.
Determinados países não dedicam normas constitucionais à proteção ambiental, permanecendo silentes e alheios à proteção dos animais quer enquanto bens jurídicos autônomos, quer enquanto integrantes de noção de ambiente, conforme bem pontuado pela professora da Universidade de Lisboa Carla Amado Gomes, ao citar os exemplos de Portugal, Dinamarca, Estados Unidos e França[2].
Entretanto, a previsão constitucional brasileira não é tão arrojada quando comparada com a Constituição da Suíça, por exemplo, que contempla proteção direta e detalhada aos animais no seu artigo 80, no qual afirma que a Federação adota regras de proteção aos animais, regulando, no particular: (a) a guarda e o cuidado; (b) experimentos e intervenções em animais vivos; (c) o uso de animais; (d) a importação de animais e os produtos animais; (e) o comércio e o transporte de animais; (f) a matança de animais.
Inúmeros são os tratados internacionais que dispõem acerca da proteção à fauna. A Convenção Europeia sobre a proteção dos animais em transporte internacional de 1968, tem como objetivo criar condições de alojamento, alimentação e cuidados às necessidades fisiológicas e etológicas, de acordo com regras científicas e experiência prática.
Em 1976 foi a provada a Convenção Europeia para a proteção dos animais nos locais de criação, com a finalidade precípua de impedir o sofrimento de animais que estejam sendo transportados.
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, baseada na obra de André Géraud publicada em 1924, sob o título Déclaration des droits de l’animal, foi proclamada em 1978 que conclama a sociedade para uma convivência harmônica entre os seres humanos e os animais e reconhece direitos básicos aos animais, como o direito à vida, à reprodução, alimentação e a de não serem submetidos à crueldade.
Os animais de companhia, ou seja, aqueles que têm uma ligação mais próxima com o ser humano, tiveram assegurados o respeito e o tratamento digno na Convenção Europeia sobre a proteção de animais de companhia de 1987.
O artigo 13º do Tratado de Funcionamento da União Europeia reconheceu a qualidade de seres sensíveis aos animais, atribuindo deveres de proteção por parte do legislador da união e dos Estados-membros, nada obstante a sujeição à compatibilização com práticas culturais arraigadas em cada localidade.
Ao citar António Menezes Cordeiro, autor da obra Tratado de Direito Civil, a professora Carla Amado[3] demonstra a existência de uma corrente doutrinária que defende o estatuto diferenciado para os animais domésticos, sendo estes definidos como “semoventes”, pois não estão em absoluta liberdade de uso e fruição do seu dono em virtude da qualidade de seres sensíveis. “O respeito à vida é uma decorrência ética do respeito pelo seu semelhante (…) O ser humano sabe que o animal pode sofrer, sabe fazê-lo sofrer; pode evitar fazê-lo. A sabedoria dá-lhe responsabilidade.”
A proteção ao meio ambiente é uma realidade que merece atenção especial do ordenamento jurídico. O Direito do Ambiente em matéria de proteção à fauna é protegido pela CF, cabendo ao legislador encontrar o equilíbrio entre essa proteção e as manifestações culturais e desportivas.
A decisão proferida nos autos da ADI 4983/CE em 6/10/2016
A prática da vaquejada, muito popular em várias regiões do Brasil, consiste em uma dupla de vaqueiros, montados em cavalos distintos, que busca derrubar um touro, puxando-o pelo rabo dentro de uma área demarcada.
O estado do Ceará regulamentou a prática desportiva mediante a promulgação da Lei 15.299/2013. A Procuradoria-Geral afirma que há exposição dos animais a maus-tratos e crueldade, enquanto o governador do estado defendia a constitucionalidade da norma, por versar patrimônio cultural do povo nordestino, a demonstrar o conflito de normas constitucionais sobre direitos fundamentais — de um lado, o artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, e, de outro, o artigo 215 da CRFB.
Afirmou em seu voto o ministro Marco Aurélio que quando se faz presente essa via de mão dupla, não existe nem pode existir controvérsia. Afinal, “o dever geral de favorecer o meio ambiente é indisputável. A problemática reside em saber o nível de sacrifício que os indivíduos e a própria coletividade podem e devem suportar para tornar efetivo o direito. Ante essa circunstância, não raro fica configurado o confronto com outros direitos fundamentais, tanto individuais, como o da livre iniciativa, quanto igualmente difusos, como o concernente às manifestações culturais enquanto expressão da pluralidade, de que trata o aludido artigo 215 do Diploma Maior”.
É por essa razão que cabe ao Supremo Tribunal Federal, diante dos princípios constitucionais, harmonizar esses conflitos que são naturais da convivência humana.
Nos casos enfrentados pela suprema corte e mencionados no item anterior (briga de galos e farra do boi), foram destacados os conflitos entre normas de direitos fundamentais presentes nas manifestações culturais e a constatação de inequívoca crueldade contra animais, tendo prevalecido, no âmbito da ponderação de direitos, normas e fatos de forma mais favorável à proteção ao meio ambiente.
Portanto, a preocupação maior é com a manutenção das condições ecologicamente equilibradas para uma vida mais saudável, harmônica e segura dos cidadãos de hoje e de amanhã.
Os 11 ministros que compõem o STF debateram se caberia indagar se esse padrão decisório configuraria o rumo interpretativo adequado a nortear a solução da controvérsia constante do processo que estavam julgando. A resposta dada por seis julgadores foi afirmativa, ante a comprovação de práticas cruéis contra bovinos (e equinos) durante a vaquejada.
É que antes de atingir a finalidade de se derrubar o boi pelos vaqueiros, o animal é enclausurado, açoitado e provocado a sair em disparada quando da abertura do portão da jaula. Daí a dupla de vaqueiros o agarra pela cauda, a qual é torcida até que caia com as quatro patas para cima e, assim, fique totalmente dominado.
Nos autos do processo foram anexados laudos técnicos que demonstraram as consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental.
Também foram apresentados estudos que comprovaram lesões e danos irreparáveis nos cavalos utilizados naquela prática, dentre elas, tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica.
No voto prevalecente restou decidido que ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, “tem-se como indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidas. O ato repentino e violento de tracionar o boi pelo rabo, assim como a verdadeira tortura prévia — inclusive por meio de estocadas de choques elétricos — à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição, consubstanciam atuação a implicar descompasso com o que preconizado no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta da República”.
Dessa forma restou afastado o argumento da defesa no qual a norma seria constitucional na medida em que seria possível a realização da prática desportiva sem ameaça à saúde dos animais.
Restou decidido, portanto, que diante da forma como desenvolvida, a intolerável crueldade com os bovinos mostra-se inerente à vaquejada. A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade, puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada, configura maus-tratos, razão pela qual não poderia prevalecer o valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da CF.
Na decisão, restou concluído. Verbis:
“A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente”[4].
Dessa forma, foi julgado procedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei 15.299, de 8 de janeiro de 2013 do estado do Ceará, que servirá de norte e orientação para demais leis em outros estados da Federação.
Conclusão
A decisão proferida pelo STF não importa em cerceamento da atividade cultural e desportiva de determinadas regiões brasileiras. É plenamente possível se encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade da prática desportiva e a manutenção da cultura popular, sem que tais fatos impliquem no sofrimento ou adoção de práticas cruéis aos animais. Evidentemente que tal sofrimento não se aplica quando houver justificada finalidade alimentícia ou científica.
Diante de tudo o que foi exporto pode se dizer que determinados animais são titulares de direitos fundamentais na condição de direitos subjetivos, razão pela qual é possível reconhecer a possibilidade de atribuição de uma dignidade da vida humana à natureza, de maneira geral.
Em relação aos animais, tal dignidade significa o reconhecimento de um dever de respeito e consideração, assim como dever de proteção, de tal sorte que os animais não podem ser reduzidos à condição de “coisa”, cabendo ao ser humano, em razão de suas circunstâncias privilegiadas, a proteção desses indivíduos, afinal a sabedoria gera responsabilidade.
[2] In MEIRIM, José Manuel (Coordenador). O Desporto que os Tribunais Praticam. 1ª edição, Coimbra (Portugal): Coimbra Editora, 2014 – P. 742.
[3] In MEIRIM, José Manuel (Coordenador). O Desporto que os Tribunais Praticam. 1ª edição, Coimbra (Portugal): Coimbra Editora, 2014 – P. 747.
[4] Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4425243 . Acesso em 9/10/2016.