Por Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga
Uma menina de 13 anos foi responsável por encher de orgulho um imenso país que muito tem sofrido nos últimos tempos. A atleta Rayssa Leal, carinhosamente chamada de Fadinha, demonstrou maturidade, ética e fair play em sua passagem pelos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Poucas horas depois, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) foi ao Twitter para destacar o feito de Fadinha e defender a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois o trabalho infantil é proibido no Brasil para jovens com idade inferior a 14 anos. No post, o parlamentar escreveu: “as crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata nas Olimpíadas… Ué! É pra pensar… Parabéns à nossa medalhista olímpica! E revisão do Estatuto da Criança e Adolescente já!”. Em seguida, o deputado citou o artigo 60 do Estatuto, que trata disso: “‘Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade.’ Eu defendo a revisão deste artigo no Estatuto da Criança e Adolescente, se atentem para a palavra QUALQUER no texto da lei”.
Tal fato demonstra um absoluto desconhecimento da Lei Pelé por parte do deputado, tendo em vista que a jovem Fadinha pratica uma modalidade desportiva, mas não trabalha.
De um lado, há a prática desportiva e o jogo e, do outro, trabalho e profissionalismo, dois fenômenos que sempre conviveram de forma conflituosa. É preciso diferenciar quem recebe dinheiro por meio do desporto e dele tira o seu sustento e de sua família daquele que vê o desporto como um fim em si mesmo, dedicando-se por prazer, por diversão, mesmo que receba incentivos financeiros.
A Lei Geral do Desporto do Brasil (conhecida como Lei Pelé) estabelece que o desporto de rendimento pode ser praticado de modo formal ou não formal. O desporto formal requer um contrato de trabalho por escrito e é caracterizado pelo recebimento de remuneração pactuada entre atleta e o clube empregador. Já o desporto não formal é caracterizado pela liberdade de prática e inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.
A relação de emprego somente vai existir quando estiver presente o contrato de trabalho, que caracteriza o profissionalismo do atleta, no qual há a obrigatoriedade de prestação de trabalho desportivo ao clube, empregador, mediante o recebimento de uma retribuição.
A gloriosa Fadinha não é uma trabalhadora e não possui contrato de trabalho. Ela não vive “do” skate, mas vive “para” o skate e nos mostrou a beleza de uma exibição descontraída, despreocupada e alegre, além de transmitir a essência inerente em toda criança, que pratica o desporto por prazer e diversão e acredita que os sonhos estão aí para serem realizados. Tal fato se tornou possível justamente porque criança não trabalha. Logo, não há que se cogitar alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sob pena de extinguir o que de melhor existe em uma criança: a esperança de ver os seus sonhos serem realizados.
Sócio-fundador do escritório Corrêa da Veiga Advogados, vice-presidente de relações internacionais da Academia Nacional de Direito Desportivo, presidente da Comissão de Direito Desportivo do Instituto dos Advogados Brasileiros
Artigo publicado no O Globo
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