Por Ana Canhedo e Bruno Cassucci
Dos R$ 665 milhões que o Corinthians apresentou de dívidas em seu balanço de 2019, R$ 110 milhões se referem a Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) de funcionários e jogadores. Especialistas ouvidos pelo GloboEsporte.com apontam que isso caracteriza crime tributário e pode ocasionar problemas ao Timão.
O Corinthians fechou o ano passado com R$ 88,7 milhões a pagar em imposto de renda. O valor mais do que dobrou desde o fim de 2018, quando o débito era de R$ 36,9 milhões. O balanço não detalha se a dívida se refere a tributos descontados dos salários dos funcionários que não foram repassados à União.
Em relação ao FGTS, a dívida cresceu 333% no último ano, saltando de R$ 6,6 milhões para R$ 22 milhões.
A reportagem do GloboEsporte.com ouviu sete ex e atuais empregados do Corinthians, entre jogadores e colaboradores de áreas administrativas. Em condição de anonimato, todos afirmaram que os depósitos do FGTS não estão em dia. Três destes profissionais forneceram os extratos detalhados de suas contas do fundo de garantia, nos quais o último pagamento que consta foi realizado em fevereiro de 2019, referente aos meses de setembro e outubro de 2018. São 18 meses de atraso.
Segundo um membro da diretoria alvinegra que não quis se identificar, o atraso nos pagamentos de FGTS passou a ser praxe no Corinthians há mais de um ano. Quando decide demitir um funcionário, o clube quita as parcelas atrasadas para não ter problemas jurídicos.
O balanço financeiro de 2019, obtido pelo GloboEsporte.com, foi enviado no fim de abril a alguns conselheiros do Corinthians, mas só será publicado no site oficial do clube após ser votado pelo Conselho Deliberativo – o que ainda não tem data para ocorrer por conta da pandemia do novo coronavírus.
Procurado, o presidente alvinegro, Andrés Sanchez, não quis conceder entrevista. Na última semana, o Timão se pronunciou sobre as dívidas por meio de nota (confira abaixo).
O que dizem os especialistas
A reportagem do GloboEsporte.com entrevistou cinco advogados especialistas em assuntos tributários para entender o teor e a gravidade da dívida do Corinthians. Também foram consultados e analisados os balanços dos rivais São Paulo, Santos e Palmeiras para efeito de comparação.
Sobre o não pagamento de Imposto de Renda, o Corinthians pode ser acusado de crime de apropriação indébita, de acordo com os entrevistados. Previsto no artigo 168-A do Código Penal, ele consiste em deixar de repassar à Receita Federal as contribuições recolhidas.
– Pode haver uma série de consequências. Uma delas é apropriação indébita, respondendo criminalmente. Se vai ou não existir condenação, não dá para antecipar. Basta a Procuradoria da República tomar a iniciativa. E quem responde por isso é quem estava na administração do clube à época que o recolhimento do imposto não foi feito. Mas o risco maior é do clube. Receitas podem ser penhoradas, como já aconteceu com outros clubes – explicou o advogado Rafael Pandolfo, doutor em direito tributário.
O Corinthians não é o único grande clube do estado a apresentar em seu balanço dívidas relativas a IRRF. Porém, os rivais possuem um passivo muito menor.
O do São Paulo é de R$ 70 mil de IRRF, mas o clube ainda informa ter R$ 19,1 milhões de encargos trabalhistas a recolher, sem detalhar quais são eles; do Santos, R$ 18 milhões. O Palmeiras possui R$ 10,9 milhões de IRRF em seu balanço, valor provisionado a pagar em 2020, referente a novembro, dezembro, 13º e férias, e já quitados em janeiro e fevereiro, de acordo com o financeiro do clube.
– Ao que tudo indica, Palmeiras e São Paulo estão em uma situação que, se não estiver 100% regular, está muito próxima disso. Não é possível afirmar com 100% de precisão apenas pelos balanços. Já o Santos acendeu o sinal amarelo pelo valor apresentado. Ao que tudo indica, possui valores não recolhidos de IRRF.
– O Corinthians inequivocamente é quem tem o maior problema de todos. Está com saldo altíssimo, e esse saldo não diz respeito às obrigações prestes a vencer. Para você entender: as contas fecham em 31 de dezembro, e aí o clube tem que pagar o mês de dezembro ainda, talvez algo de novembro e o 13º salário. Muitas vezes, ele informa no balanço o imposto retido como obrigação tributária, mas não que isso seja algo devido há muito tempo. Possuir esse saldo de tributos não significa que o clube seja um devedor contumaz e que não vai quitar – completou Rafael.
Segundo a advogada Lyvia Amico, também especialista em assuntos tributários, o Corinthians pode sofrer sanções de cunho tributário, trabalhista e criminal. Em relação ao não pagamento de IRRF, ela explica que os dirigentes do clube podem ser penalizados.
– É prevista a detenção de seis meses a dois anos e multa. A legislação prevê a responsabilidade pela infração daqueles que com ela concorrem, ou seja, os diretores, administradores, gerentes ou empregados com responsabilidade apurada em processo regular, porque possuíam o dever de pagamento dos valores dentro da estrutura societária e não o fizeram.
Lyvia também comenta as possíveis consequências pelo atraso nos depósitos do FGTS:
– Existe uma vertente jurídica que entende que a criminalização por apropriação indébita neste caso também ocorre. Contudo, por ser o FGTS um direito do trabalhador e por não ser objeto de retenção, uma vez que o valor pago a esse título pelo empregador não é descontado do salário do empregado, entendemos não se enquadrar na tipificação de crime tributário, podendo eventualmente se enquadrar nos termos da apropriação indébita trazida pelo Código Penal se comprovado o dolo na conduta.
Já o advogado Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga, presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/DF (2012; 2013/2015 e 2016/2018), vê um cenário alarmante e lembra que a dívida de FGTS pode acarretar na rescisão de contrato de jogadores:
– Os valores consolidados das dívidas são assustadores, pois dobraram de 2018 para 2019. E com a pandemia provocada pelo Covid-19 e a paralisação das atividades desportivas, as perspectivas para 2020 podem ser catastróficas. Pela Lei Pelé, o atraso no pagamento de FGTS e INSS, por período igual ou superior a três meses, pode ensejar a rescisão indireta do contrato de trabalho do atleta – disse.
João Henrique Chiminazzo, advogado especialista em direito desportivo, também aponta o risco de perder jogadores na Justiça caso o pagamento de FGTS não esteja sendo feito corretamente. O Vasco, por exemplo, teve problemas dessa espécie com Thiago Galhardo e Wagner. O Santos foi processado pelo técnico Jorge Sampaoli pelo mesmo motivo – a ação ainda corre na Justiça.
– Basicamente, quando a gente fala de ausência de recolhimento de fundo de garantia, não tem um impacto criminal em primeiro momento. Até porque não é retirado do trabalhador para que seja recolhido, é o valor a mais que o clube tem que recolher. Mas pode trazer impacto na questão trabalhista, com pedido de rescisão contratual – explicou Chiminazzo.
O advogado Luiz Roberto Castro, mestre em direito desportivo, pondera que o Corinthians não é o único clube a apresentar este tipo de dívida, mas vê risco de problemas para em um futuro próximo:
– O primeiro ponto é que não é o Corinthians que passa por esse tipo de problema. Outros clubes, a maioria, têm problemas semelhantes. Fato é que esse valor pode, sim, gerar apropriação indébita. Qualquer crime desta espécie pode ser revertido mediante pagamento ou parcelamento. O problema é que os clubes sempre alegam que estão sendo cobrados a mais ou que há algum tipo de cobrança indevida. Mas para fazer o parcelamento, é preciso que o clube assuma essa dívida. É possível que essa dívida seja executada ainda neste ano, entre setembro e outubro, até pela necessidade de arrecadação da Receita Federal. Mas também é possível que o governo federal crie algum tipo de plano para que seja pago de maneira parcelada. O grande problema é o Corinthians não ter um plano de pagamento de dívida a longo prazo.
O outro lado
O Corinthians emitiu uma nota oficial na última terça-feira na qual comenta os dados do balanço financeiro de 2019 e aponta motivos para o déficit de R$ 177 milhões no exercício e o aumento da dívida. O clube, porém, não mencionou os débitos referentes a imposto de renda e FGTS.
Para justificar os resultados negativos na última temporada, a diretoria financeira do Timão apontou queda de receitas e aumento de despesas, sobretudo com a compra de atletas. Diz um trecho da nota oficial:
“Em resumo, houve efetivamente um déficit um crescimento das obrigações, gerados basicamente pelos investimentos na equipe de futebol profissional que, infelizmente, não produziram (ainda) retorno esportivo – e, por consequência, financeiro. No entanto, como demonstrado, o déficit pode ser revertido com negociações de atletas e as obrigações, na mesma medida, são administráveis considerando a capacidade do Corinthians de geração de receitas”.