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Transgêneros e hiperandrogenismo no esporte e o Projeto de Lei 2.596/2019

Por Maurício Corrêa da Veiga / Publicado no Conjur

Muito tem se especulado acerca da participação dos atletas transgêneros em competições desportivas e os debates acabam enveredando para questões ideológicas quando poderiam priorizar dois eixos fundamentais: a dignidade da pessoa humana e o equilíbrio das competições desportivas.

Transgênero pode ser definido como a pessoa que tem uma identidade de gênero oposta do seu sexo original.

Acerca da atuação de atletas transgêneros em competições, os seus desdobramentos e a postura do Comitê Olímpico Internacional, já foram apresentados importantes trabalhos acadêmicos, de renomados autores. Gustavo Lopes Pires de Souza, enfrentou o tema quando escreveu “Ana Paula x Tifanny: verdades têm de ser ditas”[1].

Em recente artigo, Luiz Otávio de Almeida Lima e Silva abordou os limites entre a ciência e os direitos humanos na questão relacionada também ao hiperandrogenismo no esporte[2].

No presente ensaio, pretendemos enfrentar o Projeto de Lei 2.596/2019, que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero em competições esportivas oficiais no território brasileiro.

Procuraremos responder a determinadas questões, entre elas: o instrumento legal em comento viola a autonomia de entidades desportivas no tocante a sua organização e funcionamento? Atleta do sexo feminino que produz naturalmente testosterona acima dos níveis estabelecidos pelas entidades de administração do desporto poderão participar das competições sem qualquer restrição?

O Projeto de Lei 2.596/2019
No dia 30 de abril, o deputado Júlio César Ribeiro apresentou o PL 2.596/2019, que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero em competições esportivas oficiais no território brasileiro.

O artigo 1º veda a participação de transgêneros em equipes do sexo oposto ao do nascimento.

Estabelece o artigo 2º que as entidades de administração do desporto e as entidades de prática desportiva que não observarem essa lei, na oportunidade da inscrição de seus atletas em competições oficiais, serão desclassificadas e/ou multadas, conforme regulamento.

Já o parágrafo único desse artigo dispõe que, comprovado o desconhecimento dos responsáveis pela inscrição da condição do atleta transgênero, ainda que a equipe beneficiada tenha sido premiada, o prêmio ou o título será anulado automaticamente, sem prejuízo da apuração de responsabilidades.

Por fim, o artigo 3º diz que o atleta transgênero que omitir sua condição da respectiva entidade de administração do desporto e da respectiva entidade de prática desportiva responderá por doping e será banido do esporte.

O referido projeto de lei tem como objetivo assegurar o equilíbrio das competições desportivas, o que efetivamente não vem ocorrendo em casos nos quais atletas transgêneros participam de competições em equipes do sexo oposto ao de seu nascimento, mesmo quando as taxas hormonais estejam dentro dos limites de tolerância exigidos pelas entidades competentes.

Com efeito, quando se estabeleceu a divisão entre categorias feminina e masculina, a intenção foi reconhecer uma questão biológica e natural de diferenças hormonais, físicas, ósseas e musculares. Caso essas diferenças entre homens e mulheres não fossem relevantes, todos poderiam atuar em conjunto, independente do sexo.

De outro lado, não se pode perder de vista que a legislação em comento pode ser questionada perante o STF, tal como ocorreu com a Lei 13.155/2015, que previa a impossibilidade de o clube participar de campeonato quando deixasse de honrar com o pagamento de débitos fiscais, previdenciários e trabalhistas (ADI 5.450 – rel. min. Alexandre de Moraes).

O princípio da autonomia das entidades desportivas é assegurado no artigo 217 da Constituição Federal e tem sido observado com rigor pela suprema corte do país.

Transgêneros, hiperandrogenismo e o PL 2.596/2019
No início do mês de maio, o Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) validou a regulamentação da Federação Internacional de Atletismo (Iaaf), que impõe a atletas como a meio-fundista Caster Semenya que se mediquem para reduzir os níveis de testosterona produzidos naturalmente pelo seu corpo, como condição de participação em determinadas competições de atletismo.

A referida decisão nos parece uma afronta à individualidade do cidadão. Nesse sentido, é lapidar a assertiva do professor português e membro correspondente da Academia Nacional de Direito Desportivo, Alexandre Miguel Mestre, quando diz que põe em causa a autodeterminação da identidade do género e expressão do género. Coloca em crise o direito à proteção das características físicas/sexuais. Afronta o direito ao livre e pleno desenvolvimento da personalidade humana, inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Estigmatiza, marginaliza atletas que, pela sua condição física, são mais vulneráveis, no desrespeito pela dignidade da pessoa humana, Princípio Fundamental do Olimpismo, constante da Carta Olímpica[3].

Curioso ressaltar que a decisão do TAS caminha em sentido oposto ao que estabelecido no Projeto de Lei 2.596/2019.

A participação de um atleta transgênero em categoria distinta da do seu sexo biológico representa manifesto desequilíbrio desportivo e importa em fator de discriminação com as atletas adversárias e demais integrantes da equipe.

Com efeito, a Carta Olímpica, que deve ser obedecida pelas federações internacionais, estabelece que não pode haver discriminação de qualquer tipo, devendo ser ressaltado que também a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da Unesco consagra o desporto como “um direito fundamental de todos”, ressaltando em sua nova versão o princípio da igualdade pela não discriminação.

Logo, nada impede que seja criada uma liga que possa recepcionar atletas transgêneros que disputariam os torneios em igualdade de condições, fieis às disposições constantes nos diplomas internacionais que regem o desporto.

Outrossim, em que pese a intervenção estatal ser vedada quando constatada a interferência na organização e no funcionamento das entidades desportivas, à luz do que prevê o artigo 217 da CF e as recentes decisões do STF, nada impede que essas entidades adotem em seus regulamentos as disposições constantes no Projeto de Lei 2.596/2019, após os debates que se fazem necessários.

O célebre professor João Lyra Filho foi categórico ao afirmar que “a vida do desporto é o movimento popular da vida social, ativado sem influência do poder coercitivo do Estado e indiferente à organização política do Estado. É a soma condensada dos costumes do povo, das tendências do povo, das manifestações do instinto, da alma e do espírito do povo, muitas vezes em conflito com o estado positivo que se apresenta à ordenação jurídica dos códigos comuns e alheio às revelações teológicas ou metafísicas do conhecimento” (LYRA FILHO, 1952: P. 25).

Ao permitir a presença de transgêneros em equipes do sexo oposto ao do nascimento, os costumes e as tendências de um povo estão sendo ignorados, e as manifestações da alma, desrespeitadas, o que não autoriza a intervenção do Estado, mas ensejará uma atuação firme das entidades de administração do desporto e de prática desportiva.

[1] http://www.itatiaia.com.br/blog/gustavo-lopes/tifanny-tem-todo-o-direito-de-ser-tifanny-mud
[2] https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI302319,51045-Hiperandrogenismo+transgeneros+no+esporte+o+limite+entre+a+ciencia+e
[3] https://www.record.pt/opiniao/detalhe/semenya-e-o-desporto-um-direito-humano