Casos de Jô e Lucas Crispim acendem o debate; advogados explicam qual o limite entre responsabilidade com o empregador e liberdade individual
Das razões usadas para justificar queda de rendimento de um atleta ou má fase de um time, festas são as favoritas dos torcedores. Quando a sequência é ruim, as redes sociais são tomadas por “denúncias” de jogadores em eventos com música e bebidas alcoólicas. Uma discussão que, às vezes, ultrapassa o ambiente virtual. Dois casos esquentaram o debate nos últimos dias: a presença do atacante Jô num pagode enquanto o Corinthians jogava e o afastamento de Lucas Crispim por festejar o aniversário com o Fortaleza em crise. Afinal, o que separa as responsabilidades da liberdade individual?
O GLOBO ouviu especialistas em direito trabalhista e desportivo para entender até onde os clubes podem cobrar e punir seus jogadores e a partir de quando configura-se abuso. Os dois casos recentes tiveram desfechos distintos. Crispim foi reintegrado três dias após o afastamento. Já Corinthians e Jô acordaram uma rescisão. Ele questionou a legitimidade das críticas:
— Se o Corinthians tivesse ganho, será que eu seria massacrado como fui? — ponderou à Rádio 365, de São Paulo, referindo-se à derrota do time para o Cuiabá.
Presidente da comissão de direito desportivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, Maurício Corrêa da Veiga explica que, para os jogadores, a relação de trabalho com seus empregadores é muito diferente da dos trabalhadores de outras áreas.
— Quando o juiz trabalhista avalia um caso, ele tem a CLT como parâmetro. Mas, se for um atleta, você aplica primeiro a Lei Pelé. Se ela for omissa a uma determinada questão é que se recorre à CLT.
É o artigo 35 da Lei Pelé que versa sobre os deveres dos jogadores. O problema é que ele é curto — são apenas três incisos. E o texto é genérico, dando margem a interpretações. Uma das obrigações é preservar as condições físicas. Parece consenso que andar de moto é um risco ao corpo do atleta. Mas e estar numa festa?
— (Se o clube proibir) é cláusula abusiva. O atleta não está fazendo nada que comprometa a relação dele com o clube num momento de folga. Se a festa for na casa dele, ainda está sendo muito cauteloso. Porque poderia fazer no Copacabana Palace se quisesse. Não está infringindo nenhuma norma trabalhista e não tem Lei Pelé que o impeça. Você estaria ferindo o maior dos direitos, que é o constitucional da liberdade de ir e vir — diz o advogado Alan Belaciano, para quem Crispim teria direito a um pedido de desculpas do Fortaleza.
— O fato de o atleta manter vínculo profissional não significa que a sua liberdade está completamente capturada pelo clube. Celebrar a data de aniversário é algo esperado e absolutamente natural. A excessiva sensibilidade da direção do clube, em razão de derrota sofrida em jogo, jamais poderia prejudicar o jogador, cuja vida privada deve ser respeitada, concordando ou não. O jogador tem todo direito de requerer, ainda, um pedido de desculpas oficial do clube.
Além do contrato trabalhista, muitos jogadores possuem o de concessão dos direitos de imagem. E ele abre outra discussão: sobre manchar a reputação do clube ao qual se é vinculado por algum comportamento inapropriado ou até mesmo um crime. Na maioria dos contratos de imagem, há algum cláusula relacionada a este tema. As previsões vão desde advertências a multas. Ainda assim, há limites para as proibições.
— O poder diretivo e disciplinar do empregador vai alcançar o atleta se ele se envolver em situações que: 1. Causem debilidade ao corpo dele; 2. Podem macular a imagem do clube — explica o advogado trabalhista e desportivo Domingos Zainaghi:
— Vamos imaginar que o atleta está numa festa no fim de semana e se envolve numa briga, bate nas pessoas e vai parar na delegacia. Isso vai resvalar no clube em que ele trabalha. Mas no caso do Jô, por exemplo, foi simplesmente um sujeito que mostrou não estar nem aí se seu time estava ganhando ou perdendo. Mas não cometeu nenhuma indisciplina ou insubordinação.
‘Bonde da Stella’: recuo na multa
A paixão inerente ao futebol torna ainda mais tênue a linha que delimita até onde os clubes podem ir. Não é raro que, ao se verem pressionadas, diretorias tomem decisões. Em 2015, o Flamengo anunciou afastamento e multa a cinco jogadores — Alan Patrick, Everton, Marcelo Cirino, Paulinho e Pará, apelidados na ocasião de “Bonde da Stella” — por uma festa em meio à má fase do time. Alegou danos à imagem da instituição.
Ainda que o comportamento deles tenha sido inapropriado, todos estavam no momento de folga. Após o anúncio, o Flamengo foi notificado por Alan Belaciano, advogado dos atletas, sobre os abusos que estavam sendo cometidos. Internamente, chegaram a um acordo de que não haveria multa.
— Tem que ver o que está descrito no contrato de imagem: o que pode, o que é conduta errada, o que pode prejudicar o clube, e poderia ter uma multa em cima da imagem. Ou seja: depende do que é combinado entre clube e atleta — explica o advogado Diogo Souza, especialista em direito desportivo.
— No meu entendimento, não seria válida uma cláusula no sentido de aplicar multa caso o atleta vá para alguma festa em um momento de lazer numa fase ruim do clube. E se for outro caso de violação de imagem? Aí vai depender do caso concreto, se aquela violação está descrita no contrato. Normalmente, os clubes colocam a cláusula de forma genérica e discutem caso a caso.
Matéria publicada no portal O Globo.
Por Diogo Dantas e Rafael Oliveira.